“Por muitos” ou “por todos”? A resposta certa é a primeira.
Por Sandro Magister | Tradução: Fratres in Unum.com

Enquanto o texto tradicional na versão latina original ainda diz: “Hic est enim calix sanguinis mei […] qui pro vobis et pro multis effundetur,” as novas fórmulas pós-conciliares leram no “pro multis” um imaginário “pro omnibus”. E, ao invés de “por muitos”, traduziram por “por todos”.
Ainda no último período do pontificado de
João Paulo II, algumas autoridades vaticanas, incluindo Joseph
Ratzinger, tentaram renovar a fidelidade nas traduções ao “pro multis”. Mas sem sucesso.
Bento XVI resolveu cuidar disso
pessoalmente. Prova disso está na carta que ele escreveu no último dia
14 de abril aos bispos da Alemanha.
O link para o texto completo da carta
segue abaixo. Nela, Bento XVI resume as questões principais da
controvérsia para melhor fundamentar sua decisão de restaurar a correta
tradução do “pro multis”.
Mas, para melhor compreender o contexto, vale lembrar aqui de alguns elementos.
Em primeiro lugar, ao dirigir sua carta
aos bispos da Alemanha, Bento XVI também deseja alcançar os bispos de
outras regiões de língua alemã: Áustria, os Cantões Alemães na Suíça e o
Tirol do Sul, na Itália.
De fato, se na Alemanha, apesar da forte
resistência, a conferência episcopal optou recentemente pela tradução do
“pro multis” não mais com o “für alle”, por todos, mas com o “für
viele”, por muitos, este não é o caso da Áustria.
Tampouco é o caso da Itália. Em novembro
de 2010, por votação, dos 187 bispos votantes, somente 11 escolheram o
“per molti”. Uma maioria esmagadora votou a favor do “per tutti”,
indiferentes às instruções do Vaticano. Um pouco antes, as conferências
episcopais de 16 regiões italianas, com exceção da Ligúria, se
pronunciaram pela retenção da fórmula “per tutti”.
Em outras partes do mundo, estão
retornando ao uso do “por muitos”: na América Latina, na Espanha, na
Hungria, nos Estados Unidos. Frequentemente com desacordo e
desobediência.
Mas Bento XVI claramente deseja ver esta
questão resolvida. Sem imposições, mas instando os bispos a preparar o
clero e os fiéis, com uma catequese apropriada, para uma mudança que
deve ocorrer inevitavelmente.
Depois desta carta, fica fácil prever que
o “per molti” também será restaurado nas Missas celebradas na Itália,
apesar do voto contrário dos bispos em 2010.
A nova versão do missal, aprovada pela
conferência episcopal italiana, está atualmente sob o exame da
Congregação para o Culto Divino. E, neste ponto, certamente será
corrigida de acordo com as instruções papais.
Um Segundo ponto diz respeito aos contínuos obstáculos encontrados pela tradução do “por muitos”.
Até 2001, os proponentes de traduções
mais “livres” dos textos litúrgicos apelavam a um documento de 1969 do
“Consilium ad exsequendam Constitutionem de Sacra Liturgia”, cujo
secretário era monsenhor Annibale Bugnini, um documento sem assinatura,
estranhamente escrito [originalmente] em francês, comumente referido por
suas primeiras palavras: “Comme le prévoit”.
Em 2001, a Congregação para o Culto
Divino publicou uma instrução, “Liturgiam Authenticam,” para a correta
implementação da reforma litúrgica conciliar. O texto, datado de 28 de
março, foi assinado pelo cardeal prefeito Jorge Arturo Medina Estevez e
pelo arcebispo secretário Francesco Pio Tamburrino, e foi aprovado pelo
papa João Paulo II numa audiência concedida oito dias antes ao cardeal
secretário de estado Ângelo Sodano.
Lembrando que o rito romano “tem seu
próprio estilo e estrutura que devem ser respeitados o máximo possível
na tradução”, a instrução recomendava a tradução de textos litúrgicos
que fossem “não tanto um trabalho de invenção criativa, senão um
[trabalho] de fidelidade e exatidão na transcrição dos textos latinos
para a língua vernácula”. Boas traduções – prescrevia o documento –
“devem ser livres de uma dependência exagerada dos modos modernos de
expressão e, de modo geral, livres de uma linguagem psicologizante”.
A instrução “Liturgiam Authenticam”
sequer citava o “Comme le prévoit”. E era uma omissão voluntária, para
privar o texto definitivamente de uma autoridade e de uma oficialidade
que ele jamais havia tido.
Mas, apesar disso, a instrução encontrou
uma enorme e fortíssima resistência, mesmo dentro da Cúria romana, tanto
que foi ignorada e contradita por dois documentos pontifícios
subseqüentes.
O primeiro foi a encíclica “Ecclesia de
Eucharistia” de João Paulo II em 2003. No segundo parágrafo, onde lembra
as palavras de Jesus para a consagração do vinho, afirma: “Tomai,
todos, e bebei: Este é o cálice do meu Sangue, o Sangue da nova e eterna
aliança, que será derramado por vós e por todos para remissão dos
pecados” (cf. Mateus 14,24; Lucas 22,20 e 1Cor 11,25). O “por todos” ali
presente é uma variação que não tem base alguma nos textos bíblicos
citados, evidentemente introduzido a partir das traduções presentes nos
missais pós-conciliares.
O segundo documento é a última das cartas
que João Paulo II costumeiramente endereçava aos padres toda
Quinta-feira Santa. Tinha a data remetente de 13 de março de 2005,
escrita no Hospital Gemelli, e afirmava no 4º parágrafo que: "Hoc est enim corpus meum quod pro vobis tradetur’.
O corpo e o sangue de Cristo são dados pela salvação do homem, da
totalidade do homem e por todos os homens. Esta salvação é integral e ao
mesmo tempo universal, pois ninguém, ao menos que livremente o escolha,
é excluído do poder salvífico do sangue de Cristo: ‘qui pro vobis et pro multis effundetur´.
É um sacrifício oferecido por “muitos” como diz o texto bíblico (Mc
14,24; Mt 26,28; Is 53, 11-12); esta expressão tipicamente semítica se
refere à multidão que é salva por Cristo, o único Redentor, e, ao mesmo
tempo, infere a totalidade dos seres humanos a quem a salvação é
oferecida: o sangue do Senhor é “derramado por vós e por todos”, como
algumas traduções legitimamente explicitam. O corpo de cristo é
verdadeiramente oferecido ‘pela vida do mundo’ ( Jo 6, 51; 1 Jo 2,2).”
João Paulo II estava com a vida por um
fio, estaria morto 20 dias depois. E foi um papa nestas condições, que
sequer tinha forças para ler, a quem obrigaram assinar um documento em
favor do “por todos”.
Na Congregação para a Doutrina da Fé, que
não tinha recebido o texto antecipadamente, a questão foi recebida com
desapontamento. Tanto que, alguns dias mais tarde, no dia 21 de março,
segunda-feira da Semana Santa, numa reunião tumultuada entre os chefes
de alguns dicastérios da Cúria, o Cardeal Ratzinger registrou seu
protesto.
E menos de um mês depois, Ratzinger foi
eleito papa. Anunciado ao mundo com visível satisfação pelo cardeal
protodiácono Medina, o mesmo que havia assinado a instrução “Liturgiam Authenticam”.
Com Bento XVI como papa, a restauração da tradução correta do “pro multis” imediatamente se tornou um objetivo de sua “reforma da reforma” na arena litúrgica.
Ele sabia que encontraria uma oposição
ferrenha. Mas nesta arena ele nunca teve medo de tomar decisões
difíceis, como o provou o motu proprio “Summorum Pontificum” pela
liberação da Missa no rito antigo.
Um fato bem interessante é o modo com o
qual Bento XVI quer implementar suas decisões. Não somente com ordens
peremptórias, mas através da persuasão.
Três meses depois de sua eleição a papa,
ele fez com que a Congregação para o Culto Divino, liderada então pelo
cardeal Francis Arinze, conduzisse uma pesquisa entre as conferências
episcopais para descobrir suas opiniões a respeito da tradução do “pro multis” pelo “por muitos”.
Tendo reunido tais opiniões, no dia 17 de outubro de 2006, sob a instrução do papa, o cardeal Arinze enviou uma carta circular a todas as conferências episcopais,
elencando seis motivos em favor do “por muitos” e encojarando-os –
sempre que a formula “por todos” estivesse sendo usada – a “realizar a
catequese necessária dos fiéis” em face da mudança.
É esta catequese que Bento XVI sugere que
seja feita na Alemanha particularmente, numa carta enviada aos bispos
alemães no último dia 14 de abril. Nela, ele aponta que não lhe parece
que esta iniciativa pastoral sugerida com autoridade há seis anos atrás
tenha sido jamais realizada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário