DO FRATES IN UNUM.COM:

Frei Luís Carlos Susin discursa aos bispos do Brasil.
No último dia 18 de abril, Frei Luís
Carlos Susin, professor da PUC do Rio Grande do Sul, foi convidado para
apresentar, na Assembléia Geral da CNBB, uma “análise de conjuntura” —
aquele bolodório chatérrimo que
ela publica todo mês em seu site e que ninguém lê,
fora os tipos “intelectuais” que vivem às expensas das entidades
católicas do Brasil — voltada exclusivamente ao campo eclesial.
Perguntar não ofende. Dom
Raymundo Damasceno, presidente da CNBB e criado Cardeal há pouco: como o
senhor permite tamanha afronta ao magistério de Bento XVI debaixo do
seu eminentíssimo nariz? O repertório de desaforos é tão vasto que até o
arranjo de altar usado por Bento XVI é chamado de “contaminação da
volta do sacro arcaico”.
Atos ou omissões podem dizer muita coisa, Eminência.
Não seria oportuno se pronunciar a respeito e talvez até revelar o nome
do infeliz que teve a desfaçatez de convidar este senhor para falar na
Assembléia Geral?
Reputados bispos
ditos “conservadores” do Brasil, se é que existem: abram suas
reverendíssimas bocas, façam algo, dissociem-se dessa pantomima. Os
fiéis clamam!
And last but not least. Frei Susi, quais blogs
o senhor tinha em mente ao elaborar o seu discurso? Só podemos
interpretar esta sua “aula magna” como um verdadeiro sinal de alerta aos
bispos contra alguma sanidade que vem sendo recobrada, pouco a pouco,
pelos fiéis e padres em nosso país.
Ah, sim! Íamos nos esquecendo. Calorosa e fraternalmente desejamos: Vão para o raio que os partam, o senhor e seus amiguinhos proféticos latino-americanos, com a sua “Igreja Santa e Pecadora”!
* * *
[...] É claramente equivocado,
como fazem os tradicionalistas radicais, acusar o Concílio de provocar
ruptura com a tradição da Igreja. O Concílio não é a causa, mas a busca de resposta às rupturas
e, mais ainda, ao desmoronamento de um paradigma cultural em que
aconteceu a dissociação entre fé e cultura, que Paulo VI colocou em
relevo como algo dramático na Evangelii Nuntiandi - e que foi
vivido e sentido pela grande maioria dos bispos aqui presentes. O
Concílio nos ajudou a sairmos do gueto cultural já insustentável, foi
ponte e não ruptura.
A década de sessenta, de fato, testemunhou uma queda de paradigma também na totalidade da vida eclesial: ficamos
órfãos de livros para rezar, sem cantos para cantar, sem livros para
estudar, sem roupa adequada para vestir, sem linguagem adequada para
nossas homilias, sem referências de autoridade canônica estável para
obedecer. Como em toda queda de paradigma, que não se dá por partes, mas
em sua totalidade, foi necessário ser criativo até para sobreviver
eclesialmente. Isso foi vivido no marco da queda de um
paradigma mais amplo e dramático da cultura moderna para a pós-moderna,
cujo simbolismo é o ano de 1968 e os que se seguiram.
Quando cai um paradigma, como analisam os especialistas, tudo volta a zero, e todos necessitamos aprender novamente, precisamos ser novamente alfabetizados. [...] Voltar ao paradigma anterior para se proteger de ameaças e sombras é inviável e patético. [...]
[Nota da Redação: A respeito da volta ao zero: "Já
durante as sessões e, a seguir, cada vez sempre mais, no período
sucessivo, opôs-se um auto-intitulado 'espírito do Concílio', que na
verdade, é o seu verdadeiro 'antiespírito'. Segundo esse pernicioso
antiespírito [...] tudo o que é ‘novo’ [...] seria sempre, e de qualquer
forma, melhor do que o que existiu ou existe. É o antiespirito, segundo
o qual se deveria começar a história da Igreja a partir do Vaticano II,
visto como uma espécie de ponto zero” – RATZINGER, J.; MESSORI, V. A fé em crise? O cardeal Ratzinger se interroga. São Paulo: EPU, 1985, p. 21]
“Ruptura”, palavra non grata?
Ela foi cunhada na área da teoria do conhecimento como “ruptura
epistemológica”, significando que contextos novos não podem ser
conhecidos por meio de categorias de conhecimento tradicionais, e
somente uma ruptura epistemológica prepara uma nova compreensão com uma
epistemologia nova. Nesse sentido, ruptura não é uma negação, mas uma
colocação em perspectiva histórica. Por exemplo, uma liturgia
barroca ou uma igreja barroca fazem parte do tesouro histórico da
Igreja, e paramentos barrocos tecidos em fios dourados podem ser
apreciados em nossos museus para compreendermos uma época de nossa
história. Mas insistir numa missa barroca é ir vivo para o museu. Assim também certas categorias de linguagem, certas leis canônicas que fizeram história, etc.
Mas como a palavra “ruptura” ganhou um sentido diabólico em alguns segmentos da Igreja
[Outra nota da redação: particularmente, na Sé de Pedro], talvez seja
mais sábio não utilizar a palavra. A palavra adequada é “renovação”,
como enfatizou Bento XVI. Segundo ele, trata-se da “reforma na
continuidade do mesmo sujeito Igreja”. Os que utilizam a hermenêutica da continuidade dão
ênfase à continuidade mais do que à reforma. Mas a palavra chave para
entender um Concílio que quer introduzir uma reforma é, de fato,
“renovação”, pois esta é a história do cristianismo desde o evangelho: novidade, e, portanto, renovação. Importa mais o futuro do que o passado, e a memória só tem sentido enquanto reforça a esperança.
[...]
Tanto no clero como entre os católicos
que estão inseridos em movimentos e organismos eclesiais, a cinqüenta
anos do começo do Concílio, temos uma geração naturalmente afastada da
experiência do Concílio e do seu contexto. É uma geração que, em caso
positivo, escuta ou estuda um acontecimento do passado. Que importância
conseguem dar à recepção do Concílio, por exemplo, no Pacto da Catacumba
ou em Medellín? Há uma dificuldade que agrava a consciência da
relevância do Concílio e da sua recepção, já mencionada na introdução: a
menor importância que se dá, hoje, na cultura, à consciência histórica e
crítica. Quando, por exemplo, um grupo de jovens se organiza
para reivindicar uma liturgia anterior ao Concílio, fazendo a afirmação
equivocada de que se batem pela liturgia “que sempre foi e sempre
será!”, estamos diante de um conflito por falta de interesse por
informações de ordem histórica.
[...]
Se o Vaticano I fortaleceu o primado
petrino do bispo de Roma, o Vaticano II complementou o ensinamento sobre
a hierarquia sublinhando o papel do colegiado dos bispos e das Igrejas locais.
O colegiado exercido nas Conferências introduziu o que Dom Boaventura
Klopenburg chamou de “novo gênero literário” do magistério. Cinqüenta
anos depois se pode encontrar nos sites das Conferências os resultados
de tal exercício. O CELAM e a CNBB tiveram momentos antológicos que
repercutiram no conjunto da Igreja. Recentemente um fórum de católicos do Quebec se dirigiu aos seus bispos pedindo que evitassem la peur de Rome ["o temor de Roma"], para que fosse o debate com Roma e não a subserviência a marca do exercício da colegialidade.
[...]
No entanto, por diversos caminhos, a
palavra “participação” é decisiva na eclesiologia pós-conciliar. Um dos
elementos que deixam a situação nervosa é a maior participação das Igrejas locais na nomeação de seus bispos. As consultas secretas sub grave
tem suas razões, mas sobram duas perguntas: Esta forma consegue evitar a
endogenia interna à hierarquia da Igreja? Ela evita as pressões e
eventuais corrupções locais, mas não fere a sensibilidade de
participação também nas responsabilidades maiores da Igreja, selando um
abismo entre leigos e hierarquia, e às vezes também entre clero e seus
bispos? Tal situação se replica também nas comunidades paroquiais.
O verdadeiro poder, que evita tanto o
caos como o autoritarismo, é, conforme refinada conceituação de Hannah
Arendt, “capacidade de ação em conjunto”, portanto tecido por consensos
desde a discussão até a decisão. Ainda que se advoguem razões de revelação e de direito divino para agir de modo diferente,
o poder e a autoridade arriscam ficar sem plausibilidade e sem eficácia
quando utiliza o mecanicismo “exteriorista” de tipo “manda quem tem o
poder e obedece quem tem o dever”.
Examinando a realidade, há
inúmeras comunidades paroquiais levadas nos ombros de grupos de leigos,
frequentemente mais mulheres que homens, mas há também o fato
sintomático de mulheres, inclusive da vida religiosa feminina mais
consciente, que se distanciam de uma Igreja governada somente por
homens. Não é o caso de entrada de mulheres no sacerdócio
ministerial, mas de oportunidade de participação nas instâncias de
governo da Igreja.
[...]
Não se pode dialogar simplesmente apelando para o princípio de autoridade, citando
o magistério. Como o magistério autêntico é um ministério específico de
autentificação, ou seja, de oficialidade, é natural que seja um pouco
mais conservador do que os trabalhos e ensaios dos teólogos, mas estes
precisam de apoio e confiança para suas pesquisas e sua audácia criativa, sem que pese tacitamente a possibilidade de perda de missio canônica e outros incômodos. Francamente aqui fala um teólogo para os senhores bispos: há um clima de conformismo exagerado e temeroso. Embora tal clima não corresponda tanto ao Brasil como a outros países.
[...]
Permitam-me três exemplos, sintomas que causam ruído em nossa liturgia: em alguns casos, o
neo-sacerdote, depois da unção das mãos, foi convidado a percorrer a
igreja com as mãos levantadas sob o aplauso dos fiéis, reforçando assim a
percepção de sua sacralidade e diferença. Ora, o óleo, que é
do crisma, é o mesmo no qual são ungidos todos os cristãos para
assumirem seus ministérios de vida cristã adulta. O testemunho da
sacralidade dessas mãos será o seu próprio serviço, não o culto às mãos.
O segundo exemplo é o costume recente, já corrigido com fadiga em
algumas dioceses, de conduzir o Santíssimo exposto em ostensório para que o povo o toque com suas mãos ou outras manifestações de fervor,
o que os liturgistas alertam como perda de foco da celebração
eucarística, onde há comunhão, mais importante do que o toque fervoroso.
É também incompreensão da reserva eucarística, sempre subordinada à participação na eucaristia. O que eu queria sublinhar é que esta exuberância típica do barroco leva a supervalorizar, por exemplo, o toque ou a adoração mais do que a comunhão, o que nos conduz diretamente para o sacro arcaico. Finalmente, o
acento unilateral que, na celebração eucarística, ganhou ultimamente,
tanto em termos de linguagem como na disposição do espaço e objetos
litúrgicos, o aspecto de sacrifício centrado na cruz ou nos altares de queima da vítima animal.
Ora, o memorial eucarístico abrange toda a vida, a morte e a
ressurreição de Jesus, e a melhor forma da mesa é a ceia da comunidade
em torno à mesa da comida. Novamente retorna a pergunta: é contaminação da volta do sacro arcaico também na Igreja?
Conjuntamente com este acento no sacro, ressurge
também entre nós o risco de dualismo entre religião e mundo, sacro e
profano, contrário à economia da encarnação e da transfiguração pascal
cristã. Tais sintomas aparecem em movimentos eclesiais e em homilias
catastróficas a respeito do mundo em seus diversos aspectos e onde a
religião parece pairar acima do mundo degradado.
[...]
Evidentemente, o Concílio reclamou para a liturgia o retorno aos três aspectos da genialidade romana: a simplicidade, a sobriedade e a funcionalidade.
Estes três princípios permitem uma boa transparência, sólida e séria.
Juntamente com a participação ativa e os ministérios, isso nos dá
critério suficiente para discernirmos os eventuais excessos de
entusiasmo pagão e a transformação da liturgia em performances de passarela e culto à personalidade.
[...]
Há novos estilos de comunidades, no
Brasil bem pesquisadas pelo grupo da antropóloga Brenda Carranza da Puc
de Campinas. Há dois perfis nessas novas comunidades, algumas de estilo soft,
pertença leve e pouca institucionalidade, mais de acordo com os ares
pentecostais que respiramos. Mas as mais notáveis são as de pertença hard, dura e total, buscando uma plataforma firme num mundo movediço e meteorológico. Esses grupos tendem a ser restauracionistas, e em seus sites, sobretudo em blogs com comentários, seguem um tom bastante agressivo em relação aos que são católicos de outra forma.
Sem adequada formação podem terminar em fanatismo e violência verbal.
Algumas ocorrências de excesso de basismo nas comunidades de base, em
décadas passadas, parecem quase inócuas diante da crescente agressividade de grupos tradicionalistas que se pode detectar na Internet a nível internacional e nacional.
Embora o clima pentecostal favoreça uma sensibilidade mais ecumênica, a mídia de algumas denominações pentecostais tem contrastado o nome de católicos com o nome de cristãos,
que, nesse caso, substitui a palavra “crente” e suas conotações
pejorativas vindas dos católicos. Ficamos assim reclassificados por
eles: os cristãos são os que seguem Jesus, e os católicos são os que seguem o Papa.
Como estamos em tempos de desapropriação de símbolos e especialmente da
linguagem, fica muito difícil desfazer este sofisma. O único
instrumento sem retaliações indignas é o de utilizarmos também com
abundância o nome de cristãos. (Embora seja verdade que inúmeros grupos
católicos utilizem as assim chamadas “três brancuras” – a hóstia, Maria e o Papa – para caracterizar a identidade católica
que, de resto, usa muita linguagem comum desses tempos pentecostais. Se
por hóstia entendemos os sacramentos, por Papa entendemos magistério e
clero, e por Maria toda uma forma de devoção e fervor, é certo que dizem
muito do que é a identidade católica que de fato é percebida. Mas se desenvolvermos as formas indicadas pelo Concílio Vaticano II, tudo ganha maturidade).
[...]
Ainda é sentida a dolorosa situação de crime infame nos abusos por pedofilia, conjugados ao abuso de poder sacro e de traição da confiança, que teve como consequência a percepção de falibilidade
da Igreja e a diminuição de autoridade pública como perita em
humanidade. Em termos eclesiológicos já se confessava antes disso sermos
Igreja santa e pecadora, mas o cultivo da sacralidade
do clero e a repugnância pelo tipo de crime foram um choque incomparável
a outros casos de pedofilia: corruptio optima péssima. (A
falta de verbo nos faz traduzir frequentemente pelo lado da
consequência: a corrupção do melhor o torna o pior. Mas pode ser
traduzido de forma mais contundente ao se referir à sacralidade: a
corrupção do melhor engendra o pior. É o “anticristo” que se pode surgir em meio cristão, quando se perverte, segundo João.) Ou seja, foi
a própria sacralidade do poder, considerado inatingível exatamente por
sua sacralidade, que gerou o pior tipo de pedofilia, justamente aquela
vinda de pessoas consideradas sacras. [...] As estatísticas dão esperança, uma vez que a concentração de casos de abuso está em clérigos cuja formação se situou exatamente no paradigma pré-conciliar que já não se sustentava mais.
Não voltar para as condições de formação daquele tempo já é um ganho.
Mas este é só o lado negativo. O lado positivo da cura é, insisto, o
testemunho do contrário do escândalo: o socorro aos pequeninos, a opção
preferencial pelos pobres e pelos que sofrem, seguindo o começo da Gaudium et Spes e a grande tradição latino-americana.